quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Vale a pena penser nisto...

"O pó entranha-se pelo mais fino dos poros e dilui-se com o suor numa espécie de pasta castanha que cobre a cara, debruando os óculos que protegem os olhos.
É, provavelmente, o único ponto onde essa fina poeira não entra, contando que a transpiração não embacie o olhar e obrigue a parar e a limpar tudo, uma e outra vez.
Há uma desidratação permanente que empapa igualmente as pernas quando percorremos as sendas fechadas, onde o ar quase não circula e o roncar bruto do escape corta o silêncio como um estilete: há um inevitável lado de intruso na natureza quando se faz trail por esses montes fora. Tanto como de respeito!
Conheço quem se aventure só pelo prazer de desafiar o corpo e o massacrar a um bom domingo de manhã: o tremer constante do guiador mói os punhos, as pernas estão quase sempre hirtas, em rigidez vigilante a segurar o tronco, enquanto se lê o terreno com rapidez. A pouco e pouco, os músculos vão chamando o ácido láctico de mansinho, até a dor ser permanente. Mas eu confesso, ando muito longe dessa demanda estranha do castigo da carne: suporto todas essas agruras com a paciência de quem acredita que duas horas de liberdade na natureza valem seguramente isso, ou até mais. Porque é dos antídotos melhores que conheço para o stress: se não se está concentrado a cem por cento no que se anda a fazer, se não estivermos despertos para aquele rego mais cavado, para aquela pedra escondida entre as ervas que crescem naquele vale isolado, é mais que certo estar no chão não tarda!
É precisamente, portanto, o inverso da poeira. Limpa todas as chatices da semana. Aclara todas as sombras e as manchas turvas que cresceram de segunda a sexta. Mesmo que duvide que todas aquelas protecções que se usam, dos joelhos aos cotovelos, das botas à armadura - que até mais parece preparar-nos para um duelo mediaval - sejam absolutamente seguras e nos deixem num invólucro impenetrável.
É que mais cedo ou mais tarde vamos mesmo cair, porque o imprevisto e o constante desafio dos limites a que cada um se impõe, fazem parte do próprio jogo, quer se queira quer não. Pelo que a sorte também se joga nessas fracções de segundo. Depois, num mundo cada vez mais asséptico, programado, massificado nos gostos e nos costumes, é uma espécie de regresso ao prazer da genuína descoberta. De farejar aquele trilho onde nunca ninguém andou. De vislumbrar aquela vista que provavelmente, no meio do nada, somos os primeiros a alcançar da forma que acabámos de fazer: moídos e suados, mas de sorriso nos lábios porque aquela subida íngreme e pedregosa foi, finalmente, vencida entre a adrenalina, a teimosia e o medo. Sim, aquele medo que torna a vitória ainda mais sentida."